22 de dezembro de 2024

São Lázaro da Felicidade

Cultura 17/12/2024 15:17

 

Um a um, familiares, devotos e vizinhos chegam, e cumprimentam a festeira, adentrando a sala, permanecendo de pé em sinal de crença e respeito ao Santo, os mais expeditos ficam próximo à mesa de joelho. Toalha branca sobre a mesa, que vira altar de São Lazaro, velas acessas, neste lar a imagem do santo orna a sala de visita da casa durante todo o ano, o ano todo.

Os devotos tiram o chapéu com fé e veneração, na hora grande, ao meio dia vó Felicidade puxa o terço, e o coro sonoro responde fervorosamente a cada estação. A novena só é entrecortada pelo choro de criança, ou os latidos dos ilustres convidados, esses são quase louvores. A cantilena espicha-se por nove dias e no derradeiro, uma toalha alvíssima é estendida sobre os ladrilhos, no centro da sala.

Enquanto alguns saem para tomar uma fresca embaixo do flamboyant florido de vermelho e alaranjado a fofocar as novidades da cidade; os pratos são servidos com farta macarronada, frango ao molho pardo (frango caipira: não havia essa palavra era apenas frango ao molho) e arroz com feijão.  Doze pratos são colocados sobre a grande toalha nova. Os doze cachorros entram com seus donos em direção a um dos pratos.

As pessoas apreciam o banquete dos fiéis amigos de São Lazaro: os cachorros, os ilustres convidados da festa. Os protagonistas recebem congratulações durante o ágape. Se algum cão rosna e o outro responde grunhindo com pelos eriçados, e orelhas erguidas em sinal de conflito, é rapidamente contido pelas cordas, coleiras encurtadas, e mostram pela força do dono a sua educação canina.

Enfim o espetáculo do banquete sagrado transcorria sem briga entre os cães.  A celebração da ceia memorial do senhor, comunhão de São Lazaro e os seus cães. Promessa feita pela avó materna pedindo saúde física, espiritual, benção e fatura para a família. Além do livramento da lepra, do fogo selvagem, perebas, pestes e outras feridas bravas. Tempos ancestrais de infinitas possibilidades. Ceia executada completamente e sem proezas dos cachorros.

Os cãovidados maiores de um lado e os mais bravos nos cantos do festim. Percebendo a sazonalidade da ocasião, alguns devoram sua porção com velocidade impressionante, mas logo que findava sua participação no banquete era levado do recinto e seu prato recolhido. Sua estadia era registrada pelas migalhas caídas sobre a toalha.

Ainda guardo a cena hipnótica ao ver minha mãe acocorando próximo ao ‘Garrafão”, o buldogue caramelo de minha irmã e mal percebo quando uma porção de comida, ajuntada entre os dedos de minha mãe adentram   minha boca amoldando-a. Ainda ouço o mantra de cura: “Coma é pra não pegar doenças contagiosa. São Lazaro vai te proteger.”  Entre hipnotizada e obediente não havia tempo para a recusa.

O uso ancestral da mão para fazer “capitão” (fazer bolinhos de comida com os dedos e levá-los a boca) é um ato dialético filosófico epiderme, reflete um conjunto de rituais simbólicos que atingem diversos significados, sentidos e sentimentos. Cada ingrediente e identificado pelo cheiro, cor estética, textura, temperatura, sensação tátil, olfativa, gustativa e palatal. Comer de dedos, comer com as mãos, além de afetivo, é comer com alma.

O tempo passa e aos dez anos já tinha nojo e reclamava que estava comendo resto dos cachorros; mas mãe sempre dá um jeito de colocar um “capitão”, bolinho de comida, rapidamente na boca da cria.

O ritual do terço e comida aos cachorros findou com a morte da minha avó. Caracterizações performáticas e artísticas das multiplicidades contidas nos meus eus. As cores dos pratos esmaltados cintilam minhas lembranças, sinto o cheiro das galinhadas com macarrão; ouço o chiado da madeira no fogão a lenha, o burburinho na cozinha dá aconchego e alegra minha alma.  

Entrecruzei o que vi e ouvi das pessoas enquanto assistia ao festejo de São Lazaro, outras imagens foram forjadas pelos seus cães levados para a celebração; cerimônia religiosa gerida pela avó, pelas tias, pela vizinhança simples da chácara ‘Capim Branco’ tatuam meu ser com as marcas dos poderes sagrados, do cotidiano simples e femininos; com atos de fé compartilhados e repartidos igualmente.

Ceiar com os animais era mais que um ato de confirmação e pedindo de proteção contra as pestes e doenças de pele, era símbolo de amor, respeito à vida das criaturas divinas.

As mulheres da família Rocha à frente da cozinha preparavam almoço que era servido a todos os convidados após a ceia dos cachorros.

Ao crescer em entendimento, ao longo dos anos, sou capaz de decodificar os signos de sacralização, de perceber os elos entre os seres visíveis e invisíveis, na ligação entre o mundo físico e espiritual, bordejando os reinos encantados, vegetal, mineral e animal. E hoje cá estou, minha fé se expandiu e hoje celebro Pai Omulú tomando banho de pipoca. Mesma fé. Outros nomes. Atotó! Atotó! Benção meu Pai Omulú.        


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